A DIMENSÃO DA PSIQUE RELIGIOSA E SUA FINALIDADE
Escrito por Alessandra Ribeiro. Postado em Artigos Técnicos
Em um mundo onde a razão e a ciência imperam, as necessidades emocionais e espirituais das pessoas acabam sendo negligenciadas, o que impacta diretamente na saúde integral do ser humano. A religiosidade, enquanto prática de interiorização e aproximação da mente consciente com os conteúdos que a transcendem, pode ser vista como uma forma de compensação psicológica, sendo a busca por significado um fator inerente à psique humana.
Jung (OC 11/1) reconhecia que a religião desempenha um papel fundamental na psique humana e constitui uma função natural do seu funcionamento, podendo ser observada nas mais diversas culturas e desde tempos imemoráveis. As práticas religiosas oferecem rituais e possuem um sistema de crenças que suscitam a reflexão dos indivíduos sobre o sentido da sua existência. Para Jung, a função religiosa da psique busca abarcar questões profundas e transcendentais, como a origem da vida e o propósito da existência humana.
Para Jung (JUNG, OC 11/1), a religião é uma atitude do espírito humano, a qual poderíamos qualificar como uma observação cuidadosa de certos fatores dinâmicos concebidos como ”potências”, tais como: espíritos, demônios, deuses e ideais. Em suas palavras:
Eu gostaria de deixar claro que, com o termo "religião", não me refiro a uma determinada profissão de fé religiosa. A verdade, porém, é que toda confissão religiosa, por um lado, se funda originalmente na experiência do numinoso,e, por outro, na pistis, na fidelidade (lealdade), na fé e na confiança em relação a uma determinada experiência de caráter numinoso e na mudança de consciência que daí resulta. (Jung, OC 11/1 § 9)
No volume designado Psicologia e Religião, Jung (OC 11/1) correlaciona a abordagem psicológica à religiosa e frisa a importância de que a religião seja considerada pelos profissionais que trabalham com saúde mental, uma vez que esta representa o que há de mais antigo e universal na mente humana. E reforça que pesquisas nesta área deveriam ser realizadas à luz da fenomenologia, reforçando sua postura científica diante do assunto.
Religião e religiosidade não são, para Jung, uma questão metafísica, tendo reiterado inúmeras vezes que sua perspectiva não era a de um teólogo e que suas pesquisas se embasavam em fatos verificáveis. A função religiosa não aponta para nenhuma especulação a respeito de uma substância divina e sim para a afirmação de que “A alma é um fator autônomo…” (JUNG, OC 11/4 § 555) e, em última análise, tem suas raízes em processos inconscientes e, por conseguinte, transcendentais.
Etimologicamente, a palavra religião vem de religare, que segundo Dorst (Apud Corazza, 2021) significa: “(re)conexão, por meio de cuidadosa observação, com aquilo que foi distanciado, perdido ou esquecido. A palavra transcendente estaria ligada à expressão latina trans (por cima, além de) e scandere (ascender, galgar, escalar)”, significando transpor limites ou ir além. A busca por um direcionamento e por algo que amplie a perspectiva da realidade, apontam para o aspecto teleológico da psique, que transcende os limites da mente consciente.
Corazza (2021) atenta para os diferentes direcionamentos que o fascínio causado pela experiência de transcendência pode levar o ser humano, e lembra que Jung (OC 10/1) vê na religião institucionalizada tanto uma possibilidade criativa, quanto um risco para a psique. As religiões teriam se constituído como a dimensão sensível, ou espiritual, de uma das polaridades psíquicas, representando o aspecto teleológico e voltado para algo que transcende o ser humano – sendo esta a possibilidade criativa.
A outra possibilidade de direcionamento, para Jung (Apud CORAZZA, 2021), ocorre quando o discurso se torna fechado e literalizado, impedindo a experiência singular do indivíduo diante do transcendente. Assim, a vivência espiritual é desequilibrada pela ausência da reflexão e do diálogo com o diferente, podendo acarretar posturas unilaterais. O instinto religioso seria, então, a busca do ser humano pela conexão com o incognoscível e com o numinoso.
Inspirado no termo cunhado por Rudolf Otto, Jung (OC 11/1) atesta que a experiência religiosa tem caráter numinoso, sendo esta um impulso mobilizador que escapa ao controle consciente, ou mesmo à compreensão, tendo ênfase seu aspecto irracional. Segundo o autor:
Religião é – como diz o vocábulo latino religere – uma acurada e conscienciosa observação daquilo que Rudolf Otto acertadamente chamou de “numinoso”, isto é, uma existência ou um efeito dinâmico não causados por um ato arbitrário. Pelo contrário, o efeito se apodera e domina o sujeito humano, mais sua vítima do que seu criador. Qualquer que seja a sua causa, o numinoso constitui uma condição do sujeito, e é independente de sua vontade. De qualquer modo, tal como o consensus gentium, a doutrina religiosa mostra-nos invariavelmente e em toda a parte que esta condição deve estar ligada a uma causa externa ao indivíduo. O numinoso pode ser a propriedade de um objeto visível, ou o influxo de uma presença invisível, que produzem uma modificação especial na consciência. Tal é, pelo menos, a regra universal. (Jung, OC 11/1 § 6)
Na perspectiva da Psicologia Analítica, a religião, cujas raízes estão fincadas no inconsciente coletivo, pertence ao universo do mistério. E mistério, na acepção do teólogo Otto (2007), é algo fascinans et tremendous, ao mesmo tempo atrai e repele, e só existe nessa condição. A psique, e sua natureza de polaridades, traz desafios ao ser humano contemporâneo, pois este encontra-se cindido na sua relação com os polos matéria e espírito, mundano e extramundano.
Segundo Jung (Apub CORAZZA, 2021), devido a mentalidade científica, o mundo se desumanizou e o homem está isolado do cosmos, bem como dos acontecimentos naturais e seu simbolismo. Para a compreensão e integração do fenômeno psíquico de modo a evitar reduzi-lo a uma base puramente intelectiva, caberia ao indivíduo “acolher, entender e traduzir a produção e linguagem do inconsciente (CORAZZA, 2021, p. 59)
Diante das cisões que marcam a humanidade nos dias atuais, Jung (Apub CORAZZA, 2021) entende ser necessária uma atitude de reflexão, aceitação e proatividade diante das polaridades, ou seja, uma reconexão consciente com as bases naturais da psique, sem nelas se aprisionar, a qual se dará através do diálogo entre os polos (matéria e espírito), possibilitando, assim, novas sínteses para o indivíduo e o contexto ao qual pertence.
Talvez se possa inferir que um dos projetos da Psicologia Junguiana é restabelecer, de forma consciente e reflexiva, mediante o símbolo, a conexão do ser humano com o inconsciente e suas bases arquetípicas, movimento esse visto por Jung como necessário após o distanciamento criado pela diferenciação da consciência. Não se trata de um retorno ao inconsciente indiferenciado, mas de uma ligação e integração intencional com o inconsciente, por meio dos símbolos e do constante trabalho de significação e ampliação. (Corazza, 2021, p. 47)
Em resumo, a função religiosa da psique é uma expressão natural da busca humana por significado e pela conexão com algo maior que nós mesmos. A religião oferece um sistema de símbolos e práticas para explorar e expressar o divino, além de fornecer um espaço para a compensação psicológica em um mundo cada vez mais dominado pela razão.
REFERÊNCIAS BIBLIOFRÁFICAS
CORAZZA, Luiz Fernando. Janelas da Espiritualidade: um olhar junguiano. Maringá: iPerfil Editora, 2021.
JUNG, Carl Gustav. Presente e Futuro OC 10/1. Petrópolis: Vozes, 2013.
________________. Psicologia e religião OC 11/1. Petrópolis: Vozes, 2012.
________________. Resposta a Jó OC 11/4. Petrópolis: Vozes, 2012.
OTTO, Rudolf. O Sagrado: os aspectos irracionais na noção de divino e sua relação com o racional. Petrópolis: Vozes, 2007.