IMAGINAÇÃO ATIVA: UMA VALIOSA FERRAMENTA NA BUSCA DA INTEGRALIDADE DO SER
Escrito por Alessandra Ribeiro. Postado em Artigos Técnicos
Alessandra Nunes Ribeiro
“A participação secreta do inconsciente no processo da vida está presente sempre e em toda parte, sem que seja preciso procurá-la. O que se procura aqui é a maneira de tornar conscientes os conteúdos do inconsciente que estão sempre prestes a interferir em nossas ações, e, com isto, evitar justamente a intromissão secreta do inconsciente, com suas consequências desagradáveis. ”
Carl G. Jung
INTRODUÇÃO
Tendo em vista a relevância, vastamente estudada e comprovada pela Psicologia Analítica, de confrontarmos os conteúdos do inconsciente e os integrarmos à luz da consciência, o presente artigo se propõe a introduzir reflexões acerca da importância da técnica que foi a principal via de acesso ao inconsciente para o próprio Jung: a imaginação ativa. Ele vivenciou esta técnica principalmente entre os anos de 1913 e 1930, resultando dessa experiência um de seus trabalhos mais importantes - o Livro Vermelho.
Segundo Von Franz (2011), a imaginação ativa resulta em um amadurecimento da personalidade ainda mais intenso e acelerado se comparado com a análise dos sonhos. A autora afirma trata-se de uma maneira dialética de lidar com o inconsciente e diz que Jung descobriu com esta técnica o efeito benéfico que ocorre quando tentamos objetivar conteúdos do inconsciente no estado desperto, nos relacionando conscientemente com eles.
A prática da imaginação ativa baseia-se na livre introspecção, sem direcionamento consciente, sendo seu intuito trabalhar com a fantasia e ter resultados transformadores através da mobilização da função transcendente. A técnica consiste em deixar a fantasia acontecer livremente, sem censura ou críticas, de modo a aproximar consciente e inconsciente visando sua síntese, o símbolo, que se assimilado pode promover a transformação necessária à psique.
No seu livro intitulado ‘A Natureza da Psique’, Jung (1971, § 132) afirma que “o inconsciente contém todas as combinações da fantasia que ainda não ultrapassaram a intensidade liminar e, com o correr do tempo e em circunstâncias favoráveis, entrarão no campo luminoso da consciência”. A imaginação ativa mostra-se uma importante ferramenta na exploração dos conteúdos presentes na sombra, facilitando sua emersão e integração à consciência.
1 REFERENCIAL TEÓRICO
1.1 INCONSCIENTE
Jung (1964) define o inconsciente como uma complexa parte da psique humana que tem tanta importância quanto a consciência, sendo o inconsciente o grande guia, amigo e conselheiro do consciente. Ele explica que a mente consciente não consegue focar em muitos conteúdos ao mesmo tempo, trazendo luz a apenas algumas das imagens que entramos em contato ao longo do dia; já o inconsciente abrange tudo e tem influência na maneira como agimos. Mesmo sem o percebermos, nossos sentimentos e comportamentos são influenciados constantemente, daí a relevância de integrarmos o conteúdo inconsciente à consciência.
Os conteúdos presentes na esfera consciente raramente estão de acordo com o material presente no inconsciente e esta falta de paralelismo não ocorre de maneira meramente acidental ou sem propósito. Pelo contrário, ela se deve ao fato de que o inconsciente se comporta de maneira compensatória ou complementar em relação à consciência. (JUNG, 1971, § 132)
Segundo Jung (1971), se a função consciente não fosse dirigida, as influências opostas do inconsciente poderiam manifestar-se desimpedidamente. No entanto, como a psique é um sistema autorregulador, cabe ao inconsciente desenvolver a contrarreação reguladora. Se os conteúdos inconscientes pudessem se manifestar sem cesura e se reconhecêssemos sua importância para a compensação da unilateralidade da consciência, seria possível viver o que o autor chamou de ‘função transcendente’. Esta, fruto da união do conteúdo inconsciente ao consciente, torna possível a mudança de atitude de uma forma natural, chegando assim a uma nova atitude não unilateral.
1.2 IMAGINAÇÃO ATIVA
Von Franz (2011), no livro intitulado ‘Psicoterapia’, afirma que o aspecto mais importante da imaginação ativa é a sua capacidade de objetivar conteúdos do inconsciente e, se comparada à mudança de personalidade que uma interpretação de sonho devidamente realizada pode acarretar, a imaginação ativa é infinitamente mais poderosa nas palavras da analista. Ela diz que esta técnica, de forma modesta, coloca em nossas mãos uma chave que permite que nos organizemos.
Se comparada às técnicas de meditação orientais ou mesmo aos exercícios cristãos, a imaginação ativa junguiana é bem menos pragmática, pois não há nenhuma meta ou modelo a ser atingido, nem um guia que interfira ou conduza o processo. Em contrapartida, esta técnica se assemelha muito com a forma de meditação dos antigos alquimistas. De forma sucinta, a prática consiste na pessoa se focar em um fragmento de sonho inconclusivo ou uma questão emocional que está vivenciando e deixar-se levar pelas fantasias que surgem espontaneamente a partir da imagem inicial. (VON FRANZ, 2011)
Von Franz menciona que a pureza ética de intenção é um dos requisitos básicos para se realizar uma imaginação ativa, isto é, a motivação para se vivenciar esta técnica não deve ser a mera satisfação de desejos. Ela também frisa que nem sempre esta técnica é indicada aos analisandos, sendo perigosa para casos de psicose latentes. A imaginação ativa também não deve ser realizada de forma forçada, quando a pessoa tem resistência a entrar no processo, e a autora conclui que “Em todos os casos que se busca a independência interior, a imaginação ativa oferece uma oportunidade única para esta realização”. (VON FRANZ, 2011, P. 176)
Em suma, conforme afirma Von Franz (2011, P. 178): “A imaginação ativa é o veículo do que Jung chamava de processo de individuação, a auto realização completa e consciente da totalidade individual”. E é através dessa experiência que a imagem de Deus (imago dei) pode ser vivenciada pelo indivíduo, pois sua influência transpassa o nível do ego, o qual se rende ao Si-mesmo.
1.2.1 JUNG E A IMAGINAÇÃO ATIVA
No prefácio de ‘O Livro Vermelho’ (2010), Ulrich Hoerni relata que Jung, no ano de 1913, começou um auto experimento que veio a ser conhecido como seu “confronto com o inconsciente” e que durou até o ano de 1930. Para viver essa imersão no seu mundo subterrâneo, Jung criou a técnica que mais tarde veio a chamar de ‘imaginação ativa’. Sobre a relevância dessa experiência em sua vida e obra, Jung comenta:
Os anos durante os quais me detive nessas imagens interiores constituíram a época mais importante da minha vida. Nelas, todas as coisas essenciais se decidiram. Foi então que tudo teve início e os detalhes posteriores foram apenas complementos e elucidações. Toda minha atividade ulterior consistiu em elaborar o que jorrava do inconsciente naqueles anos e que incialmente me inundara: era a matéria-prima para a obra de toda uma vida. (JUNG, 2010, P.7)
Para Jung, o inconsciente contém a sabedoria e a experiência de incontáveis eras, configurando-se um guia incomparável. A busca pelo encontro com essa sabedoria é descrita ao longo dessa importante obra e, nas palavras de seu editor, Sonu Shamdasani:
O Líber Novus apresenta assim uma série de imaginações ativas junto com a tentativa de Jung de compreender seu significado. Este trabalho de compreensão abrange muitos fios entrelaçados: uma tentativa de compreender-se a si mesmo e a de integrar e desenvolver os vários componentes da sua personalidade; uma tentativa de compreender a estrutura da personalidade humana em geral; uma tentativa de compreender a relação do indivíduo com a sociedade de hoje e com a comunidade dos mortos; uma tentativa de compreender os efeitos psicológicos e históricos do cristianismo; e uma tentativa de compreender a futura evolução religiosa do Ocidente. (JUNG, 2010, P. 207)
Ainda segundo Shamdasani (2010, P. 207), Jung discute sobre diversos temas nesta obra, como a natureza do autoconhecimento e da alma, sendo o tema geral do livro a maneira como Jung supera o mal-estar contemporâneo da alienação espiritual e recupera sua própria alma. Em suma, “O Líber Novus apresenta o protótipo da concepção Junguiana do processo de individuação, que ele [Jung] considerava a forma universal do desenvolvimento psicológico individual”.
Outra relevante obra em que Jung fala sobre a importância da técnica da imaginação ativa é no livro intitulado ‘O Segredo da Flor de Ouro’. Neste, Richard Wihlem traduz um velho texto chinês que fala do processo de iluminação a partir do movimento circular da luz em torno de um centro. Jung faz uma aproximação dos ensinamentos contidos no texto chinês com a realidade europeia e tece comentários a respeito do Tao; segundo o autor:
Se compreendermos o Tao como método ou caminho consciente, que deve unir o separado, estaremos bem próximos do conteúdo psicológico do conceito. (...) Trata-se também, sem dúvida, da questão de conscientizar os opostos da "conversão" para uma reunificação com as leis inconscientes da vida. A meta dessa unificação é a obtenção da vida consciente, ou, como dizem os chineses: a realização do Tao. (JUNG, 2001, P. 37)
Jung (2001) enfatiza, nesta mesma obra, que os indivíduos que dependem de um modo preponderante do inconsciente tendem a um conservadorismo psíquico, o que segundo ele pode levar a uma estagnação e desadaptação. Já uma consciência mais elevada e ampla surge a partir da assimilação do desconhecido, tendendo para a autonomia. No entanto, se a mente consciente se afastar demais das poderosas imagens primordiais, poderá romper as cadeias da instintividade e criar uma consciência intelectual exaltada e unilateral.
O caminho seguido pelo Oriente para ampliação da consciência, segundo descrito em ‘O Segredo da Flor de Ouro’, consiste justamente na união dos opostos, caminho este que os hindus chamam de nirdvandva. Para Jung:
A união dos opostos num nível mais alto da consciência, como já mencionamos, não é uma questão racional e muito menos uma questão de vontade, mas um processo de desenvolvimento psíquico, que se exprime em símbolos. Historicamente, este processo sempre foi representado através de símbolos e ainda hoje o desenvolvimento da personalidade individual é figurado mediante imagens simbólicas. Tais fatos se me apresentaram da seguinte maneira: os produtos das fantasias espontâneas, de que tratamos acima, se aprofundavam e se concentravam progressivamente em torno de formações abstratas, que parecem representar "princípios", no sentido dos "archai" gnósticos. Quando as fantasias tomam a forma de pensamentos, emergem formulações intuitivas de leis ou princípios obscuramente pressentidos, que logo tendem a ser dramatizados ou personificados. (JUNG, 2001, P. 38)
Jung (2001, P. 33) ainda fala da importância do ‘deixar-acontecer’, isto é, a ‘ação da não-ação’ e frisa a importância desta postura afirmando que a mesma foi “uma chave que abriu a porta para entrar no caminho: Devemos deixar as coisas acontecerem psiquicamente”. Jung descreve, ainda nesta obra, a técnica da imaginação ativa e diz que a mesma se inicia pela observação de qualquer fragmento de fantasia em seu desenvolvimento, sendo necessário soltar as rédeas da consciência para que o processo aconteça.
Nas palavras de Jung (1978), tornarmos as fantasias conscientes é de extrema relevância devido as seguintes consequências:
Em primeiro lugar, há uma ampliação da consciência, pois inúmeros conteúdos inconscientes são trazidos à consciência. Em segundo lugar, há uma diminuição gradual da influência dominante do inconsciente; em terceiro lugar, verifica-se uma transformação da personalidade. A conscientização e vivência das fantasias determinam a assimilação das funções inferiores e inconscientes à consciência, causando efeitos profundos sobre a atitude consciente. (JUNG, 1978, P. 95)
Jung (1978) deu o nome de ‘função transcendente’ à mudança obtida através do confronto e união dos opostos, a qual possibilita o homem alcançar sua mais elevada finalidade: a realização das potencialidades do Self.
1.3 FUNÇÃO TRANSCENDENTE
A função transcendente é o resultado do diálogo entre consciente e inconsciente e seu objetivo é a unidade psíquica. Este diálogo se dá de maneira equilibrada, onde ambos interlocutores consideram o ponto de vista do outro válido e buscam chegar a um consenso. O símbolo, fruto desta interação, é a expressão do conteúdo inconsciente que se torna parcialmente assimilável pela consciência. Segundo Jung:
O método, com efeito, se baseia em apreciar o símbolo, isto é, a imagem onírica ou a fantasia, não mais semioticamente, como sinal, por assim dizer, de processos instintivos elementares, mas simbolicamente, no verdadeiro sentido, entendendo-se "símbolo" como o termo que melhor traduz um fato complexo e ainda não claramente apreendido pela consciência. (JUNG, 1971, § 132)
É através da imaginação ativa que a função transcendente entra em cena e permite que o Si-mesmo se transforme, passando de uma condição potencial e latente para uma forma viva, manifesta e ativa. Jung ainda encoraja o uso desta técnica ressaltando seu valor tanto durante o processo de análise, quanto para a alta do analisando:
(...) a função transcendente constitui não apenas um complemento valioso do tratamento psicoterapêutico, como oferece também ao paciente a inestimável vantagem de poder contribuir, por seus próprios meios, com o analista, no processo de cura e, deste modo, não ficar sempre dependendo do analista e de seu saber, de maneira muitas vezes humilhante. Trata-se de uma maneira de se libertar pelo próprio esforço e encontrar a coragem de ser ele próprio. (JUNG, 1971, PG 17 § 193)
Da confrontação e da luta dos opostos nasce uma solução, resultado da cooperação entre o consciente e o inconsciente, a qual representa uma analogia com a imagem de Deus. Para Jung (1986, P. 100) essa solução “é indubitavelmente o esquema mais simples de uma representação da totalidade, oferecendo-se espontaneamente à imaginação para figurar os opostos, sua luta e conciliação em nós”.
CONCLUSÃO
Jung (1971, § 144) afirma que o papel do terapeuta vai além de ajudar o paciente a eliminar suas dificuldades momentâneas, este último deve ser capaz de enfrentar com sucesso também as dificuldades futuras. Ele reflete sobre qual atitude o terapeuta deve ter frente às influências perturbadoras do inconsciente e a melhor forma de comunicá-las ao paciente, sendo que responde a sua própria indagação da seguinte forma:
A resposta, evidentemente, consiste em suprimir a separação vigente entre a consciência e o inconsciente. Não se pode fazer isto, condenando unilateralmente os conteúdos do inconsciente, mas, pelo contrário, reconhecendo a sua importância para a compensação da unilateralidade da consciência e levando em conta esta importância. A tendência do inconsciente e a da consciência são os dois fatores que formam a função transcendente. É chamada transcendente, porque torna possível organicamente a passagem de uma atitude para outra, sem perda do inconsciente. (JUNG, 1971, §145)
Nesta declaração, Jung explicita a importância da integração dos opostos no processo de autoconhecimento para que se possa lidar de forma mais eficaz com as dificuldades inerentes à vida. E descreve que é através da função transcendente que esta união se dará de forma natural, modificando a atitude unilateral da mente consciente.
Von Franz (2011) define a imaginação ativa como um importante instrumento não só para o analisando, mas também para o terapeuta, e diz que Jung considerava indispensável que o analista dominasse essa forma de meditação. Ela fala dos benefícios que essa técnica traz em termos de uma autolibertação eficaz de afetos, bem como de ideias obsessivas, sendo imprescindíveis aos analistas devido ao contágio pelos conteúdos trazidos por seus analisandos.
Através da técnica da imaginação ativa a consciência pode ser ampliada continuamente, pela confrontação dos conteúdos até então inconscientes, sendo uma valiosa ferramenta no processo de individuação. Como também citou Jung (1971), os indivíduos que menos conhecem o seu lado inconsciente são os que mais influência recebem dele, mesmo sem tomarem consciência disto; por isso a importância de se buscar ferramentas que elucidem os conteúdos que estão na sombra, trazendo-os à luz da consciência para serem integrados a mesma.
REFERÊNCIAS
JUNG, Carl G. A Natureza da Psique. Obras completas, vol. VIII/2 6. ed. Petrópolis: Vozes, 1971.
JUNG, Carl G. Memórias, Sonhos, Reflexões. Nova Fronteira, 1986.
JUNG, Carl G. O Eu e o Inconsciente. Obras completas, vol. VII/2. ed. Petrópolis: Vozes, 1978.
JUNG, Carl G. O Homem e seus Símbolos. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1964.
JUNG, Carl G. O Livro Vermelho (Liber Novus). Petrópolis: Vozes, 2010.
JUNG, Carl G.; WILHELM, Richard. O Segredo da Flor de Ouro. 11 ed. Petrópolis: Vozes, 2001.
VON FRANZ, Marie L. Psicoterapia. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2011.