AUTORRESPONSABILIDADE: UM CAMINHO PARA A DISSOLUÇÃO DA CULPA E O RESGATE DA AUTENTICIDADE
Escrito por Alessandra Ribeiro. Postado em Artigos Técnicos
Todo o ser humano necessita de amor e busca sentir-se pertencente ao meio em que vive, afinal somos seres sociáveis e, nos primeiros anos de vida, dependemos do cuidado de outra pessoa para sobrevivermos. E a fim de obter aprovação e afeto daqueles que são importantes para nós, muitas vezes renunciamos ao próprio processo de desenvolvimento como indivíduos únicos que somos, nos moldando à papéis socialmente aceitos.
Desde muito cedo, a maioria de nós é ensinado a adotar uma postura “adequada” e a mostrar apenas aquilo que é esperado, assim, acabamos por nos fundir a uma imagem moldada por aqueles que foram nossos primeiros exemplos de ser humano. Segundo Hollis (1998), como toda criança precisa do amor do adulto, sinais de desaprovação, que para ela significa ameaça de abandono, acabam sendo o instrumento de opressão utilizado no processo de adaptação às regras.
Mesmo o narcisismo natural da criança, que naturalmente expressaria seus desejos, ao se deparar com o poder ilimitado do adulto de punir ou de reter sua aprovação e afeto, sabotam sua espontaneidade. Nenhuma criança consegue resistir muito tempo nesse terreno árido e logo aprende a controlar os impulsos considerados indesejáveis pelos que a cercam.
Desta maneira, a criança passa a acreditar que não pode expressar muitos dos seus sentimentos ou mesmo externalizar suas reais necessidades, pois corre o risco de ser rejeitada. Assim, distancia-se da sua verdade e torna-se uma completa estranha para si mesma. E, com o passar do tempo, pode se defender contra qualquer tema afetivamente carregado, chegando a perder contato com a realidade dos próprios sentimentos. (Miller, 1997)
A mensagem da experiência da infância, de vulnerabilidade e de impotência diante do meio que nos circundava, legitimou o sentimento de dependência do outro e de subjugação das próprias emoções e necessidades, ao passo que a ideia contrária de liberdade pessoal e de autorresponsabilidade, tornou-se intimidante. Fomos condicionados a ser agradáveis em vez de grosseiros, flexíveis e não autênticos, e a nos adaptarmos ao invés de fazer valer nossas opiniões. E quando nossa conduta ou emoções conflitavam com essa postura “adequada”, o sentimento que emergia era a culpa. (HOLLIS, 1998)
No livro intitulado ‘Os Pantanais da Alma’, James Hollis (1998) adentra no tema da culpa e traz as diferentes origens deste sentimento. A culpa no contexto aqui abordado, serve como uma defesa contra uma angústia mais profunda, refletindo a ausência de permissão para sermos nós mesmos. E a angústia que irrompe é avassaladora, justamente por datar da época em que nos sentíamos extremamente vulneráveis: a infância. Nas palavras do autor:
Como a energia nunca é perdida, residindo no inconsciente, ela pode vir à tona com um poder paralisante. Nesse momento, não estamos no presente, e sim no estado impotente da criança. Nós nos esquecemos de que, depois daquela época, surgiu um adulto que, quando age conscientemente, é perfeitamente capaz de tomar decisões de valor e consegue viver, se isso se fizer necessário, sem a aprovação dos outros. (Hollis, 1998, P. 38)
Assim, podemos entender que, neste contexto, ser bloqueado pela culpa significa ainda estar preso na infância e nas crenças lá introjetadas. No entanto, quando nos tornamos conscientes da origem desse sentimento e sua finalidade, a prisão deixa de ser inconsciente e passa a ser inaceitável. A assimilação da culpa requer que as escolhas erradas sejam reconhecidas e uma nova postura seja assumida, pois ao identificar as raízes dessa angústia, tornamo-nos capazes de recuperar nosso poder de escolha e nos sentimos livres para viver no momento presente.
A culpa nos oferece a chance de recuperarmos a iniciativa na nossa vida, uma vez que nesses momentos somos convidados a nos perguntar do que estamos nos defendendo e qual a funcionalidade desse funcionamento nos dias de hoje. E a resposta que costumeiramente encontramos é que a culpa decorre do medo de que alguém nos desaprove. No entanto, conforme dito anteriormente, essa forma de ver a realidade está pautada nas experiências infantis e nas crenças que compramos como verdade, e isso deu-se devido à incapacidade de vermos a situação desde uma perspectiva mais ampla, afinal éramos penas crianças buscando aceitação.
E estaremos eternamente sujeitos a estreiteza dessa visão, caso não a tornemos consciente e ampliemos sua perspectiva. E certamente existe um amplo espectro de reações possíveis para o adulto consciente, mas para isso não podemos nos limitar à nossa história pessoal ou da nossa família. E aqui uma ferramenta valiosíssima para desconstrução do funcionamento inconsciente, baseado nas experiências infantis, e para a ampliação do espectro de visão é a psicoterapia. (HOLLIS, 1998)
Conforme afirma Hollis (1998), ainda hoje há a errônea percepção de que grande parte do processo psicoterapêutico é despendido culpando os pais, ou as condições socioeconômicas, em vez de lidar com o presente. Ainda que boa parte da nossa personalidade seja influenciada por essas experiências formativas, a essência da terapia é nos ajudar a reconhecer a responsabilidade sobre nossas próprias escolhas e para recobrarmos a autonomia da nossa própria vida.
E é justamente a ampliação da consciência que nos induz a reconhecer a própria sombra, e nos apropriarmos dessa parte em nós já implica nos responsabilizarmos por ela. Assim, nossa postura diante do mundo também será modificada. Segundo Jung (2013):
O desenrolar do processo de individuação começa em geral com a tomada de consciência da "sombra", isto é, de uma componente da personalidade que, ordinariamente, apresenta sintomas negativos. Nesta personalidade inferior está contido aquilo que não se enquadra ou não se ajusta sempre às leis e regras da vida consciente. (...) Mas esta integração só pode realizar-se e tornar-se proveitosa quando se reconhecem, de algum modo, e com o devido senso crítico, as tendências ligadas ao processo, tornando-se possível sua realização. Isto leva à desobediência e à rebelião, mas leva também à autonomia, sem a qual a individuação não é possível. (JUNG, OC 11/2 § 292)
Para Jung (2013), quem se submete à lei ou à expectativa geral, desconecta-se do seu talento e age de forma estereotipada. Somente o fato de nos alinharmos com nossas forças interiores, em vez de nos ajustarmos reflexivamente aos poderes exteriores, nos liga a uma verdade profunda, à nossa real natureza. E é justamente nesses momentos de contato com a nossa verdade mais profunda, o encontro com o que Jung denominou de o Self, que sentimos a conexão e o apoio necessários para amenizar o medo do abandono.
Nas palavras de Carotenuto (Apud HOLLIS,1998):
A maturidade implica não tanto evitar sermos abandonados, e sim nos abandonarmos a algumas ilusões... Se conseguirmos suportar a ansiedade da solidão, novos horizontes se abrirão para nós e finalmente aprenderemos a existir independentemente dos outros (HOLLIS, 1998, p. 10)
Assim, vamos desconstruindo a fantasia de que alguém de fora venha nos salvar ou de que dependemos da aprovação alheia para sermos merecedores de amor. Essas crenças são um legado da dependência da criança com relação aos pais, e elas seguirão ditando os modelos de relacionamentos futuros se não as desconstruirmos.
Não podemos mudar em nada nosso passado, mas podemos modificar o condicionamento gerado a partir das experiências negativas que vivemos e reconquistar nossa integridade. Para a psicóloga e analista Junguiana Alice Miller (1997), isso só é possível à medida que decidimos observar mais de perto o conhecimento sobre o passado arquivado em nosso corpo, e colocá-lo mais perto de nossa consciência.
Ainda segundo a autora, apesar do caminho ser desconfortável, é o único que nos oferece a possibilidade de, finalmente, deixar a invisível e cruel prisão da infância. Desta forma, nos transformamos de vítimas inconscientes do passado em pessoas responsáveis, que por estarem cientes de sua história, são capazes de conviver com ela e de construir uma nova narrativa daqui para frente. (MILLER, 1997)
REFERÊNCIAS BIBLIOFRÁFICAS
HOLLIS, James. Os Pantanais da Alma: nova vida em lugares sombrios. São Paulo: Paulus, 1998.
MILLER, Alice. O Drama da Criança Bem Dotada: como os pais podem formar (e deformar) a vida emocional dos filhos. São Paulo: Summus, 1997.
JUNG, Carl Gustav. Interpretação Psicológica do Dogma da Trindade OC 11/2. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.