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A BUSCA PELO SAGRADO: UMA FUNÇÃO PSÍQUICA AUTORREGULADORA

A busca pelo entendimento do significado psicológico da religião e do sagrado, bem como da imagem de Deus, perpassam não apenas toda a obra de Carl Jung, mas também a sua vida; ele acreditava que existe um instinto natural de busca pelo sagrado, o qual é arquetípico e, por isso, pertencente à toda psique humana. Jung acreditava que o distanciamento do sagrado era responsável pelo alto número de neurose que encontramos na atualidade, já que as pessoas teriam perdido a conexão consigo mesmas e com o divino.

Segundo Corbett (2024), Jung mostrou que as religiões são sistemas psicoterapêuticos, uma vez que nos ajudam a lidar com importantes angústias humanas, sendo uma das maiores angústias a sensação de que necessitamos de cura. De certa forma, nos sentimos incompletos ou que existe algo de errado na maneira como somos, e esse anseio de maior totalidade é abordado pela ideia arquetípica da salvação, a qual se encontra em muitas religiões sob diferentes roupagens.

No seu livro intitulado “A psique e o sagrado: espiritualidade para além da religião”, Corbett (2024) traz a etimologia da palavra "salvação", a qual vem do latim salvus e significa "salvo", bem como "são, intacto ou inteiro". Podemos entender que a função das religiões seria nos curar ou nos tornar inteiros, oferecendo algo que nos falta. E a experiência religiosa estaria sustentada no que Jung chamou de numinoso.

O termo "numinoso" foi originalmente cunhado pelo teólogo alemão Rudolf Otto (2007), em sua obra intitulada "O Sagrado", onde descreve a experiência do divino como algo misterioso, aterrorizante e, ao mesmo tempo, fascinante. Jung (2012) adotou esse conceito para descrever uma experiência psíquica profunda e arquetípica que transcende a compreensão racional. Para ele, o numinoso é a expressão da dimensão sagrada da psique, uma força que impulsiona o ser humano em direção ao Self. É uma experiência interior de significado profundo e que não está, necessariamente, ligada a uma vivência religiosa.

O caráter paradoxal da experiência numinosa, seja ela categorizada como mágica, sagrada, arquetípica ou patológica, deve-se ao fato de que ela pode ser regeneradora ou destrutiva, mas nunca indiferente. Segundo Jung (OC 11, § 229): "A experiência numinosa pode levar o indivíduo à plenitude ou destruí-lo, dependendo de como é assimilada."

É importante salientar que religião e religiosidade não são, para Jung, uma questão metafísica, tendo reiterado inúmeras vezes que sua perspectiva não era a de um teólogo e que suas pesquisas se embasavam em fatos verificáveis, primando pela legitimidade empírica dos fenômenos. Não foi ele quem instituiu a ideia da religião como função psíquica, ele apenas observou seu surgimento na humanidade, independentemente da cultura ou da época. Em suas palavras:

Eu não me considero responsável pelo fato de que o homem, desde sempre e em toda parte, tenha desenvolvido espontaneamente uma função religiosa, e de que a psique humana, desde tempos imemoriais, tenha sido impregnada por ideias e sentimentos religiosos. Devo apenas constatar esse fato. (Jung, OC 11, § 6)

Jung não buscou explicar a origem do sentimento religioso, mas se ateve a analisar sua permanência ao longo do tempo, como suas múltiplas manifestações e elementos constantes. Seu interesse era investigar como a função religiosa afeta a psique humana, estendendo sua análise tanto à capacidade curativa dos complexos autônomos quanto à psicopatologia, abrangendo igualmente as dimensões individual e coletiva da vida psíquica.

A função religiosa não aponta para nenhuma especulação a respeito de uma substância divina e, sim, para a afirmação de que “A alma é um fator autônomo…” (JUNG, OC 11/4 § 555) e, em última análise, tem suas raízes em processos inconscientes e, por conseguinte, transcendentais. Assim como o fenômeno religioso é um fato psíquico de grande relevância, observável em todas as épocas e culturas, também a “imagem de Deus não é uma invenção, mas um dado objetivo da psique humana, que se impõe com igual força em todas as culturas" (JUNG. OC 11, § 167) e por isso deve ser reconhecido por uma psicologia científica.

A desvalorização de uma função tão poderosa quanto a função religiosa acarreta sérias consequências para a psicologia do indivíduo. O inconsciente acaba sendo fortalecido pelo refluxo da libido, o qual passa a exercer, por meio de seus conteúdos coletivos primitivos, uma maior influência sobre a mente consciente. Uma vez reprimida, esta função se potencializa e age de forma autônoma, impelindo tanto o indivíduo quanto a coletividade a viverem o irracional.

Se os conteúdos inconscientes pudessem se manifestar sem censura e se reconhecêssemos sua importância para a compensação da unilateralidade da consciência, seria possível viver o que Jung (2013) chamou de ‘função transcendente’. Esta, fruto da união do conteúdo inconsciente ao consciente, torna possível a mudança de atitude de uma forma natural, chegando assim a uma nova atitude não unilateral.

A função transcendente é o resultado do diálogo entre essas duas instâncias psíquicas e seu objetivo é a unidade psíquica. Da confrontação e luta dos opostos nasce uma solução, resultado da cooperação entre o consciente e o inconsciente, a qual representa uma analogia com a imagem de Deus. Para Jung (2015, p. 100) essa solução “é indubitavelmente o esquema mais simples de uma representação da totalidade, oferecendo-se espontaneamente à imaginação para figurar os opostos, sua luta e conciliação em nós”. E o fruto desta interação é o símbolo, a expressão do conteúdo inconsciente que se torna parcialmente assimilável pela consciência.

Talvez se possa inferir que um dos projetos da Psicologia Junguiana é restabelecer, de forma consciente e reflexiva, mediante o símbolo, a conexão do ser humano com o inconsciente e suas bases arquetípicas (...). Não se trata de um retorno ao inconsciente indiferenciado, mas de uma ligação e integração intencional com o inconsciente, por meio dos símbolos e do constante trabalho de significação e ampliação. (Corazza, 2021, p. 47)

Devido a mentalidade científica, o mundo se desumanizou e o homem está isolado do cosmos, bem como dos acontecimentos naturais e seu simbolismo. Para que pudéssemos compreender e integrar o fenômeno psíquico sem reduzi-lo a uma base puramente intelectiva, caberia ao indivíduo “acolher, entender e traduzir a produção e linguagem do inconsciente.” (CORAZZA, 2021, p. 59) Em suma, a função religiosa da psique é uma expressão natural da busca humana por significado e pela conexão com algo maior. E os sistemas religiosos oferecem um sistema de símbolos e práticas para nos aproximarmos do divino, criando um espaço para a autorregulação psíquica, em um mundo cada vez mais polarizado.

REFERÊNCIAS BIBLIOFRÁFICAS

CORAZZA, Luiz Fernando. Janelas da Espiritualidade: um olhar junguiano. Maringá: iPerfil Editora, 2021. CORBETT, Lionel. A psique e o sagrado: espiritualidade para além da religião. Petrópolis: Vozes, 2024. JUNG, Carl Gustav. A Natureza da Psique. OC 8/2. Petrópolis: Vozes, 2013. ________________. Memórias, Sonhos, Reflexões. Nova Fronteira, 2015. ________________. Presente e Futuro OC 10/1. Petrópolis: Vozes, 2013. ________________. Psicologia e religião OC 11/1. Petrópolis: Vozes, 2012. OTTO, Rudolf. O Sagrado: os aspectos irracionais na noção de divino e sua relação com o racional. Petrópolis: Vozes, 2007.