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A INTEGRAÇÃO DOS ASPECTOS SOMBRIOS DA PERSONALIDADE COMO MEIO DE ESTRUTURAÇÃO DA VERDADEIRA AUTOESTIMA

Desde o nascimento, o ser humano é influenciado pelo meio no qual está inserido, sendo ensinado baixo um sistema de crenças e valores culturais e familiares. Esse contexto tem forte influência na construção da sua identidade e na formação do seu senso de valor pessoal, dado que a criança depende totalmente dos seus cuidadores e tem seu psiquismo ainda muito suscetível a interferências do coletivo.

Segundo Hollis (1998), como toda criança precisa do amor do adulto, sinais de desaprovação, que para ela significa ameaça de abandono, acabam sendo o instrumento de opressão utilizado no processo de adaptação às regras. E é natural que pais e cuidadores estabeleçam limites e ensinem as crianças de acordo com os seus referenciais, mas neste processo é inevitável que ocorram frustrações, seja neles por desejarem algo diferente do que a criança apresenta, seja nela própria por ver o descontentamento que ocasiona ao externalizar determinadas “partes suas”.

Da mesma maneira como também é natural que a criança se espelhe nos adultos à sua volta, imitando-os, e ao perceber o que eles validam ou desaprovam, queira reproduzir os comportamentos que são mais admirados a fim de receber sua validação. Assim, a criança passa a acreditar que não pode expressar muitos dos seus sentimentos ou mesmo externalizar suas reais necessidades, pois corre o risco de ser rejeitada, muitas vezes distanciando-se de si mesma para se aproximar dos demais. (MILLER, 1997)

No entanto, essa forma de ver a realidade está pautada nas experiências infantis e nas crenças que “compramos” como verdade, e isso deu-se devido à incapacidade de vermos a situação desde uma perspectiva mais ampla, afinal éramos penas crianças buscando aprovação. E estaremos eternamente sujeitos a estreiteza dessa visão, caso não a tornemos consciente e ampliemos sua perspectiva.

Quanto mais rígido e opressor o contexto em que nasce, maior será a tendência da criança a reprimir partes da sua essência para se adaptar ao meio. E como a noção de “eu” (o ego) está sendo estruturada justamente nestes primeiros anos de vida, ela começa a compreender quem ela é e como o mundo “funciona” a partir das suas experiências, somado a algo que traz de forma inata e que lhe é único: a sua essência (o Self).

Nesse processo de adaptação, é comum que a criança reprima aspectos da sua personalidade que são rechaçados pelos demais e crie “personagens” para performar como acredita que os outros esperam que ela seja. Damos o nome de persona à essa face social que os indivíduos desenvolvem para se apresentar ao mundo; ela é como uma máscara que adotamos para nos adaptar às expectativas sociais e nos relacionarmos com os outros. Segundo Jung (1978), a palavra persona é uma expressão muito apropriada, porque designa a máscara usada pelo ator, assinando o papel que desempenha em uma peça.

A persona é um importante complexo psicológico, que todos os indivíduos desenvolvem por ser arquetípico, mas que pode se tornar problemática se a pessoa se identificar demasiadamente com ela, negligenciando aspectos internos mais profundos. Naturalmente, criamos essa máscara social a fim de atendermos às expectativas do meio, os aspectos da nossa personalidade que não foram acolhidos acabam sendo reprimidos na instância da psique que Jung chamou de sombra ou inconsciente.

É importante deixar claro que o conceito de sombra não se limita, apenas, às partes rejeitadas pela consciência. Tudo que ainda não acessamos de forma consciente, incluindo aptidões que não desenvolvemos e que existem em potencial na nossa psique, também se encontram no inconsciente como possibilidades criativas. Os conteúdos presentes na esfera consciente raramente estão de acordo com o material presente no inconsciente, e essa falta de paralelismo se deve ao fato de que o inconsciente se comporta de maneira compensatória ou complementar em relação à consciência. (JUNG, 1971, § 132)

No seu livro intitulado ‘A Natureza da Psique’, Jung (1971, § 132) afirma que “o inconsciente contém todas as combinações da fantasia que ainda não ultrapassaram a intensidade liminar e, com o correr do tempo e em circunstâncias favoráveis, entrarão no campo luminoso da consciência”. Mesmo sem o percebermos, nossos sentimentos e comportamentos são influenciados constantemente, daí a relevância de integrarmos o conteúdo inconsciente à consciência.

Como a psique é um sistema autorregulador, cabe ao inconsciente desenvolver a contrarreação reguladora. Se os conteúdos inconscientes pudessem se manifestar sem censura e se reconhecêssemos sua importância para a compensação da unilateralidade da consciência, seria possível viver o que Jung (1971) chamou de ‘função transcendente’. Esta, fruto da união do conteúdo inconsciente ao consciente, torna possível a mudança de atitude de uma forma natural, chegando assim a uma nova atitude não unilateral.

A função transcendente é o resultado do diálogo entre conteúdos do consciente e do inconsciente e seu objetivo é a unidade psíquica. Este diálogo se dá de maneira equilibrada, onde ambos interlocutores consideram o ponto de vista do outro válido e buscam chegar a um consenso. O símbolo, fruto desta interação, é a expressão do conteúdo inconsciente que se torna parcialmente assimilável pela consciência. (JUNG, 1971)

É justamente a ampliação da consciência que nos induz a reconhecer a própria sombra e nos responsabilizarmos por ela. Assim, nossa postura diante do mundo também será modificada. Segundo Jung (1979): O desenrolar do processo de individuação começa em geral com a tomada de consciência da "sombra", isto é, de uma componente da personalidade que, ordinariamente, apresenta sintomas negativos. Nesta personalidade inferior está contido aquilo que não se enquadra ou não se ajusta sempre às leis e regras da vida consciente. (...) Mas esta integração só pode realizar-se e tornar-se proveitosa quando se reconhecem, de algum modo, e com o devido senso crítico, as tendências ligadas ao processo, tornando-se possível sua realização. Isto leva à desobediência e à rebelião, mas leva também à autonomia, sem a qual a individuação não é possível. (JUNG, OC 11/2 § 292)

Jung (1975) conclui que a maior tarefa do ‘eu’ deveria ser tomar consciência daquilo que advém do inconsciente, em vez de permanecer inconsciente ou de com ele se identificar, pois em ambos os casos estaria sendo infiel à sua vocação que é de criar consciência. Segundo ele: “Individuação significa tornar-se um ser único, na medida em que por “individualidade” entendermos nossa singularidade mais íntima, última e incomparável, significando também que nos tornamos o nosso próprio Si-mesmo.” (JUNG, OC 7/2 § 266)

Para Jung (1979), quem se submete à lei ou à expectativa geral, desconecta-se do seu talento e age de forma estereotipada. Somente o fato de nos alinharmos com nossas forças interiores, ao invés de nos ajustarmos reflexivamente aos poderes exteriores, nos liga a uma verdade profunda, à nossa real natureza. E é justamente nesses momentos de contato com a nossa verdade mais profunda, o encontro com o que Jung denominou de o Self, que sentimos a conexão e o apoio necessários para amenizar o medo de sermos autênticos.

O Self é, ao mesmo tempo, o centro organizador e a totalidade da psique, pois abrange todos os aspectos da personalidade, tanto consciente quanto inconsciente. Ele é a fonte de orientação interior que busca a integração dos diversos aspectos que constituem o ser humano (luz e sombra), a fim de que a pessoa realize o seu potencial completo. Quando mais próximo estamos de viver de acordo com o nosso verdadeiro ‘eu’, maior será nosso senso de completude e unidade, o que é essencial para uma autoestima mais elevada. Pois a autoestima está muito associada à autenticidade e à coerência interna, ou seja, quando honramos e respeitamos a nós mesmos verdadeiramente.

É inegável que externalizar partes da nossa personalidade que são bem quistas socialmente e ressaltar nossos aspectos mais luminosos, é muito mais fácil do que acolher nossos aspectos sombrios. Inclusive, criamos a persona com o intuito de nos aproximarmos desse “ideal de eu”, deixando na sombra as caraterísticas que são consideradas menos louváveis. Só que não é possível - e nem saudável - sustentar essa dissociação ao longo da vida. As partes rejeitadas acabarão se manifestando de qualquer forma, por meio de mecanismos inconscientes como, por exemplo, através da projeção.

Segundo afirma Von Franz (1991), não poderíamos reconhecer nada sem projeção, pois dependemos dela para entrar em contato com conteúdos que até então estão inconscientes para nós. No entanto, da mesma maneira que precisamos projetar nos outros e nos objetos o material que não reconhecemos como nosso, a projeção torna-se o principal obstáculo para que alcancemos a verdade caso não sejamos capazes de reconhecer aquele conteúdo como pessoal e integrá-lo à consciência.

Von Franz (1991, P. 67) pontua a importância de elaborarmos a ilusão de que os problemas estão fora de nós, pois essa é a maneira que encontramos para sufocar o mistério do inconsciente: “Não sabemos o que é o inconsciente, mas o sufocamos mediante este tratamento concentrado pelo qual se detém toda projeção, intensificando o processo psicológico”. Isso significaria uma atitude de reflexão, onde se questiona de onde provêm os processos conscientes, ligando-o com o material da fantasia, isto é, o conteúdo inconsciente, criando assim um insight. Esta visão interior, no entanto, traz um entendimento que muitas vezes é amargo, por isso que poucas pessoas buscam a compreensão de si mesmas. (VON FRANZ, 1991)

Se há partes que são rejeitadas pelo próprio sujeito, este poderá passar a vida inteira buscando validação fora e projetando nos outros a responsabilidade de aceitá-lo, e jamais encontrará o que realmente necessita. E se a pessoa não se propuser a fazer esse mergulho interior e buscar conhecer suas feridas emocionais, reconhecendo as origens do seu sentimento de desvalor (que muitas vezes tem a ver com experiências vivenciadas durante sua infância e que foram reforçadas inconscientemente ao longo da vida, conforme falado anteriormente), esses padrões emocionais seguirão impactando sua autoestima negativamente.

O verdadeiro trabalho de construção da autoestima está muito mais relacionado ao aprofundamento do autoconhecimento e da apropriação da autorresponsabilidade diante das nossas vidas. Somente ao fazermos o trabalho de reconhecimento e acolhimento acerca de quem somos verdadeiramente, considerando tudo de luminoso e sombrio que nos constitui, é que conseguiremos lapidar as características que desejamos melhorar, seguindo nosso processo de evolução como indivíduos de forma intencional e consciente.

Em suma, a autoestima cresce à medida que nos alinhamos mais com nosso verdadeiro ‘eu’, ao invés de simplesmente buscar nos adaptarmos exclusivamente às expectativas externas. O processo de desenvolvimento da personalidade é, segundo Jung, uma jornada rumo à totalidade, onde nos apropriamos da nossa singularidade e buscamos a integração das diferentes esferas da psique: consciente e inconsciente. Somente assim, reconhecendo e acolhendo nossa verdadeira essência, poderemos nos estimar verdadeiramente.

REFERÊNCIAS BIBLIOFRÁFICAS HOLLIS, James. Os Pantanais da Alma: nova vida em lugares sombrios. São Paulo: Paulus, 1998. JUNG, Carl G. A Natureza da Psique. OC 8/2. Petrópolis: Vozes, 1971. JUNG, Carl G. Interpretação Psicológica do Dogma da Trindade. OC 11/2. Petrópolis: Vozes, 1979. JUNG, Carl G. Memórias, Sonhos, Reflexões. Nova Fronteira, 1975. JUNG, Carl G. O Eu e o Inconsciente. OC 7/2. Petrópolis: Vozes, 1978. MILLER, Alice. O Drama da Criança Bem Dotada: como os pais podem formar (e deformar) a vida emocional dos filhos. São Paulo: Summus, 1997. VON FRANZ, Marie L. Alquimia: Introdução ao Simbolismo. 1. ed. Toronto: Vagalume, 1991.

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